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22.Junho
1988 - A Constituição que resistiu aos golpes do tempo


Quatro décadas depois de sua promulgação, a Carta Magna de 1988 permanece como símbolo da redemocratização brasileira. Em meio aos novos ataques institucionais, parlamentares e especialistas revisitam as conquistas da Constituinte

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Para o ex-presidente José Sarney, a Assembleia Nacional Constituinte foi "o ponto culminante de um pacto pela estabilidade democrática" - (crédito: Júlio Alcântara/CB/D.A Press )
A instalação da Assembleia Nacional Constituinte, em fevereiro de 1987, simbolizou a transição de um país marcado pela repressão para uma nação em busca de reconstrução institucional. Era o ponto de partida para o redesenho do Estado brasileiro após duas décadas de autoritarismo. A censura à imprensa, o controle dos sindicatos e a repressão aos movimentos sociais ainda eram lembranças vívidas no imaginário coletivo. Mas havia, naquele início de transição, um sopro de esperança, a promessa de reconstruir o país sobre novas bases democráticas. Bases que precisam ser reforçadas para que tudo que foi construído ao longo dos últimos 40 anos não se perca, como quase vivenciamos na tentativa de golpe de Estado, orquestrado, segundo a Procuradoria-Geral da República (PGR), em que o ex-presidente Jair Bolsonaro e mais 33 são acusados de participação.



O estopim da redemocratização fora a campanha pelas Diretas Já, derrotada no Congresso, mas vitoriosa no inconsciente popular. Na sequência, a eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, com apoio da dissidência governista reunida na Frente Liberal, selou a derrota simbólica do regime. Embora a morte precoce de Tancredo, às vésperas da posse, tenha mergulhado o Brasil em incerteza, o processo democrático seguiu adiante. Coube ao vice-presidente José Sarney, egresso do regime militar, mas convertido ao diálogo, assumir a Presidência e convocar a Constituinte. Mais do que isso, garantiu autonomia aos parlamentares, estabelecendo as bases para o que viria a ser um novo pacto nacional.

A Constituição de 1988 não nasceu de uma ruptura brusca, mas de uma transição cuidadosamente negociada entre forças civis e militares. Foi resultado de uma pactuação pragmática, construída na confluência entre a vontade popular e os limites impostos pela correlação de forças da época. O próprio presidente Sarney reconheceu, em entrevista recente ao Correio, no evento Democracia 40 anos: Conquistas, Dívidas e Desafios, que a Constituinte foi "o ponto culminante de um pacto pela estabilidade democrática". E mesmo sob ataques, a Carta se manteve como a espinha dorsal das instituições brasileiras.

Um dos relatores da Comissão de Sistematização na Constituinte, o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Nelson Jobim declarou que a Constituição "foi um trabalho complexo, com muita disputa, mas necessário". O texto final consagrou avanços históricos, como a ampliação dos direitos sociais, a universalização do acesso à saúde e à educação, a valorização da dignidade humana e a limitação do poder estatal. Mas esses dispositivos nasceram de longas e complexas negociações.

Para o deputado federal Aécio Neves (PSDB-MG), neto de Tancredo Neves, o processo liderado por Ulysses Guimarães contou com "homens de coragem e visão institucional", capazes de superar interesses pessoais em nome do pacto coletivo que daria origem à chamada Constituição Cidadã. "Foi a mais bem executada obra de engenharia política da história contemporânea do Brasil", afirmou o deputado.

A ex-governadora do Distrito Federal Maria de Lourdes Abadia, uma das 26 mulheres constituintes, também relembra a singularidade daquele momento. Eleita deputada federal pelo Distrito Federal, Abadia rompeu o ciclo elitista da política nacional e participou ativamente dos debates constituintes. "Foi uma bênção, um aprendizado e uma oportunidade única de você sair lá da Ceilândia para poder ajudar a escrever a Constituição do Brasil", relembrou.

O senador Paulo Paim, à época deputado federal, foi um dos responsáveis pelas conquistas fundamentais para os trabalhadores, como o direito à greve, à redução da jornada de trabalho, à valorização do salário mínimo e a inclusão de pautas sociais estruturantes, como previdência, saúde, proteção aos idosos e combate ao racismo. Ele citou as chamadas cláusulas pétreas, que garantem o Estado Democrático de Direito, os direitos individuais, sociais e coletivos. "Esses pontos não podem ser alterados por nenhuma emenda constitucional. A sabedoria da época nos levou a colocar isso no texto justamente para blindar o coração da Constituição contra retrocessos. Ulysses Guimarães dizia: discordar, dialogar, discutir é legítimo — afrontar a Constituição, jamais. E é isso que sigo defendendo", destacou o senador.

Lobby do batom
Durante os intensos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, entre 1987 e 1988, o pequeno grupo de mulheres parlamentares decidiu que não seriam coadjuvantes. Em um Congresso amplamente masculino, com apenas 26 mulheres entre os mais de 500 constituintes, nasceu o chamado Lobby do Batom, uma articulação apartidária e histórica que garantiu a presença feminina de forma combativa e estruturada na formulação da nova Carta Magna.

O nome, inicialmente usado de maneira pejorativa por colegas homens, foi ressignificado pelas parlamentares como símbolo de resistência, unidade e enfrentamento ao machismo estrutural que atravessava os corredores do poder. "A primeira coisa que nós fizemos foi criar o Lobby do Batom. Foi uma reunião histórica em que combinamos que, independentemente de partidos, ideologias ou religiões, nós agiríamos integradas", relembra Maria de Lourdes Abadia.

Abadia, que anos depois se tornaria a primeira governadora do Distrito Federal, destaca que a primeira reivindicação do grupo ilustra bem o simbolismo do momento. "Pedimos uma reunião com o doutor Ulysses Guimarães solicitando a construção de um banheiro feminino no plenário. O Oscar Niemeyer só tinha projetado banheiros masculinos. Foi um choque até para o Ulysses, que não tinha conhecimento do fato", contou.

Apesar do número reduzido, a bancada feminina deixou legados importantes no texto constitucional, indo muito além das pautas específicas de gênero. "Eles (deputados) pensavam que a gente só ia trabalhar nas questões das mulheres. E não foi. Nós trabalhamos em todo o texto da Constituição brasileira. Mas, claro, dando uma conotação especial às mulheres", ressaltou Abadia. Segundo ela, as parlamentares atuaram como "captadoras de sonhos das mulheres brasileiras, representando pescadoras, professoras, médicas, empresárias, trabalhadoras do sal e mães chefes de família".

Entre as conquistas diretamente atribuídas à atuação do Lobby do Batom, está a inclusão da igualdade entre homens e mulheres no artigo 5º da Constituição. "Eu acho que foi o carro-chefe. Dizer que homens e mulheres são iguais perante a lei deu uma balança muito grande, porque a nossa lei era discriminatória", afirmou a ex-governadora do DF. Ela mesma apresentou uma emenda para que mulheres pudessem ser portadoras da escritura de um lote ou terreno, inspirada por sua experiência de 16 anos atuando em Ceilândia. "Eu vivi os conflitos. Já vi marido puxando cabelo de mulher para poder trocar o nome do lote. E hoje, as mulheres que não são casadas têm direito de ter não só a chefia da família, como também o terreno em seu nome".

O grupo também teve papel decisivo na formulação do Estatuto da Criança e do Adolescente e nas bases da defesa do consumidor. Apesar das vitórias, Abadia reconhece que a luta por igualdade ainda não foi plenamente vencida. "As mulheres tiveram um certo empoderamento, mas não é total. Ainda temos mulheres com o mesmo curso e a mesma profissão ganhando menos do que os homens. As conquistas vão sendo obtidas com o tempo, mas ainda falta muito".

Abadia lamenta, no entanto, que muitos dos avanços não tenham sido plenamente aplicados. "Hoje, vejo com tristeza o tanto de emendas, a quantidade de artigos desrespeitados. Quando vejo as brigas no Congresso, as agressões, penso em como o doutor Ulysses estaria triste." A ex-governadora defende que a democracia evoluiu, mas não de forma plena. "Naquela época, não existiam redes sociais. As mulheres se empoderaram, sim, mas ainda ganham menos, mesmo com a mesma formação. É uma construção, é um processo. Ainda não chegamos aonde precisamos".

Democracia sob tensão
Quatro décadas após a promulgação da Constituição de 1988, a democracia brasileira enfrenta um paradoxo inquietante. Embora as instituições tenham resistido a crises profundas — como dois processos de impeachment e uma tentativa de golpe em 2023 —, a degradação do debate público e o descrédito nas lideranças políticas sinalizam um esgotamento do pacto democrático firmado na Constituinte. Sobre os atos de 8 de Janeiro, todos os parlamentares e ex-parlamentares são unânimes em dizer que quem praticou e destruiu o patrimônio público precisa ser punido. Mas as punições precisam ser justas e de acordo com o crime cometido, de forma individual.

Para Abadia, o país está perdendo os fundamentos que sustentam a convivência democrática. "Hoje você praticamente tem um país dividido. Dois grupos que não se ouvem, não se respeitam. Uma impaciência geral, uma falta de compreensão sobre o que é democracia", lamenta.

O senador Paim citou o uso das Forças Armadas pelo governo anterior, com um grande erro. "Em vez de defenderem o Estado e a democracia, como determina a Constituição, houve tentativa de interferência política — o que só poderia dar errado", comentou, ressaltando que, atualmente, elas voltaram ao seu papel institucional. "Estão dando exemplo. No governo do presidente Lula, não houve conflito com os militares. O diálogo prevaleceu. E esse diálogo é essencial para mantermos a democracia sólida e em preparação para as eleições de 2026", frisou.

Para o historiador Daniel Aarão Reis, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e especialista em regimes autoritários, a radicalização recente revela uma ruptura na cultura democrática que deveria ter sido sedimentada nas últimas décadas. "A democracia é frágil, sobretudo quando não se constrói uma memória compartilhada sobre os erros do passado. O Brasil nunca enfrentou com profundidade o legado da ditadura militar, e por isso certas ideias autoritárias voltaram a ganhar fôlego", avaliou.

Na mesma linha, José Sarney, que presidiu o país durante a Constituinte, afirmou que "o momento atual exige vigilância". Para ele, o país vive "tensões entre os Poderes e uma sociedade contaminada pela intolerância e pela radicalização digital", mas, ainda assim, sustenta que a Carta de 1988 "permanece como nosso maior baluarte institucional".

Diálogo x ódio
Ao longo da série de entrevistas realizadas para esta reportagem, um fio condutor se revelou com clareza: o contraste entre o espírito conciliador da Assembleia Constituinte de 1987-1988 e a cultura de embate agressivo que se instalou na política brasileira nas últimas décadas. Essa degradação do debate público não é percebida apenas nos discursos inflamados nas tribunas do Congresso ou nas redes sociais, mas na própria lógica que move a atuação parlamentar — cada vez mais refém de algoritmos e nichos ideológicos.

Maria de Lourdes Abadia destacou a perda da elegância institucional como um dos sintomas mais visíveis do adoecimento democrático. "Na Constituinte, havia um cavalheirismo. Existia tolerância. Hoje, os discursos são cheios de ódio, de rancor, de fake news. É uma pena o que se tornou a política brasileira", afirmou.

Para ela, os embates ideológicos da época de Ulysses Guimarães, Pedro Simon, Jarbas Passarinho e Mário Covas ocorriam "com respeito, com educação, com foco no país". Hoje, segundo suas palavras, "o político fala para o seu grupo, para os seus seguidores, não mais para o Brasil". Esse diagnóstico foi compartilhado pelo deputado federal Aécio Neves, que apontou a radicalização como um veneno que contaminou o parlamento. "O plenário da Câmara virou um ambiente insalubre. Os extremos se digladiam para ganhar mais likes, e quem ataca mais é quem mais recebe apoio nos seus extremos. Isso é muito triste para a política", declarou. Ex-presidente da Casa, Aécio vê com preocupação a substituição do embate racional por estratégias de marketing digital — que, segundo ele, têm como combustível principal o confronto e a caricatura.

O ex-senador Cássio Cunha Lima também atribui parte da responsabilidade à incapacidade de o Estado de oferecer respostas às desigualdades. "A democracia prometeu resolver as injustiças sociais. Venceu a ditadura, venceu a inflação, mas não entregou dignidade ao povo. Isso gerou frustração e abriu espaço para o extremismo", analisou. Para ele, a radicalização atual nasce do esgotamento do modelo político e da hipertrofia de um Estado que, "em vez de ser alavanca do desenvolvimento, virou âncora".

A ascensão de figuras como, Donald Trump, Javier Milei e Jair Bolsonaro também foi objeto de avaliação pelos entrevistados. Aécio Neves enxerga uma repetição de padrões: "No Brasil e no mundo, o vácuo da política moderada está sendo ocupado por discursos extremos. É um fenômeno global, mas com causas locais distintas. O risco é que essa retórica do 'nós contra eles' acabe substituindo o pacto democrático".

Já Maria de Lourdes Abadia, com o olhar de assistente social e mulher pública, acredita que os políticos "não estão respondendo ao que é essencial para a humanidade". Para ela, a crise de representatividade é mundial: "A esquerda não conseguiu cumprir o que prometeu. A direita não tem solução. E a população, perdida, começa a buscar respostas em extremos que, na verdade, não têm projeto para o povo".

Fonte: Correio Braziliense