Em meados do século passado, em 1949, o ex-senador Abdias Nascimento escreveu uma carta aberta ao chefe de Polícia do Rio de Janeiro. Tratava do mesmo assunto que enlutou a família do dentista Flávio Ferreira Sant'Ana, assassinado por policiais militares em São Paulo, ou seja, os abusos cometidos pela polícia contra a população negra. Abdias Nascimento escreveu estas frases célebres: "Basta um negro ser detido por qualquer coisa insignificante - assim como não ter uma simples carteira de identidade - para ser logo tratado como se já fosse um criminoso. Dir-se-ia que a polícia considera o homem de cor um delinqüente nato, e está criando o delito de ser negro." O delito de ser negro. Sua condição racial, traços de sua aparência física, basicamente cor da pele e textura do cabelo, tornam o negro um ser delituoso aos olhos do preconceito. Mais de meio século depois parece que nada mudou. Sobrevivem práticas enraizadas, que não reconhecem, não valorizam a diversidade racial e étnica da população brasileira. A principal causa da morte de jovens negros é o homicídio, segundo pesquisa realizada pela Universidade de São Paulo. A ex-ouvidora e socióloga Julita Lemgruber, do Rio de Janeiro, é de opinião que “há um viés racial embutido no trabalho da polícia. O policiamento ostensivo é marcado pelo preconceito”. Um quadro perverso pelo que significa de agressão aos direitos de cidadania e aos valores da dignidade humana. Na força policial predominam mentalidades e atitudes que são entraves à plenitude da cidadania. Esta visão preconceituosa não está, infelizmente, confinada ao âmbito policial. De dois acórdãos do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo divulgados por uma revista semanal registram manifestações do preconceito existente também no Judiciário. Expressões como "tipo negróide que campeia na marginalidade" adquirem o valor de prova, segundo a revista. Polícia, Justiça e todo o imaginário social se orientam por padrões raciais, esta é a verdade de nosso processo histórico. Expressões como racismo cordial, racismo difuso, etc., servem entre nós apenas para camuflar a realidade. Em alguns momentos, como no caso do jovem dentista assassinado, a violência racial explode sem disfarces e todos acudimos para mostrar um fato singular, isolado, prontamente rechaçado. Não é verdade. O que aconteceu com o dentista Flávio não é um fato isolado. O racismo cresce à sombra. Negamos e recalcamos, mas sua obra de destruição é cotidiana e ininterrupta. Tenho defendido a necessidade de uma campanha nacional de educação contra o racismo. Precisamos promover os valores da tolerância e do respeito à diversidade. Repito: ninguém nasce racista. As pessoas aprendem a depreciar a riqueza de nosso patrimônio de diversidade. Aprendem em casa, nas relações de vizinhança, na escola, nos meios de comunicação. Uma campanha nacional, de responsabilidade do Governo Federal, representaria uma esperança de envolvimento amplo das instituições no combate às discriminações que são entraves à cidadania plena de milhões de brasileiros. (*) O Senador Paulo Paim é autor da Lei nº 10.741/2003, que dispõe sobre o Estatuto do Idoso, e do projeto de lei que institui o Estatuto da Igualdade Racial. Paulo Paim (PT-RS)