É quase um lugar-comum entre os estudiosos das relações raciais no Brasil a afirmação de que vivemos imersos há tanto tempo em um quadro de profundas desigualdades que elas de algum modo se "naturalizaram".É assim porque sempre foi assim. As desigualdades raciais são semprerealidades "dadas" e nunca realidades "criadas" por mecanismos de exclusão e práticas de discriminação. A dimensão dessas desigualdades já pode ser bem avaliada em estudos e pesquisas de órgãos como o IBGE e o Ipea. O quadro que emergede números e gráficos não deixa dúvidas sobre a exclusão social e econômica da população negra. Milhões de pessoas privadas do direito de competir em igualdade de condições. Talentos e vocações que não encontrarão os meios adequados de expressão e realização. A vida do país se atrofia porque parte significativa de sua população não pode desenvolver plenamente suas potencialidades. A Constituição de 1988 repudia o racismo mas temos reagido muito lentamente ao compromisso ali assumido de adotar medidas que tenhamcomo objetivo assegurar o exercício de direitos fundamentais a parcelasignificativa de nossa população. Antes de 1988, tínhamos já assumidoobrigações perante a comunidade internacional de encaminhar "medidasnecessárias para eliminar rapidamente a discriminação racial em todas assuas formas e manifestações". Mas fizemos letra morta da ConvençãoInternacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de DiscriminaçãoRacial, promulgada pelo Congresso Nacional, em 1969. O Governo FHC deu início a uma intervenção governamental que deverá ser aprofundada no Governo Lula. Ações pontuais precisam serarticuladas em uma política nacional, tarefa que ficará a cargo da Secretaria da Promoção da Igualdade Racial, a ser criada no dia 21 de marçopróximo.Será de fundamental importância, para o êxito de qualquer iniciativa, desencadear uma ampla campanha educativa. Ninguém nasce racista. Os preconceitos que hierarquizam os seres humanos com base em dados da aparência física são transmitidos pela cultura e a educação que recebemos.No entanto, nunca o Estado assumiu entre nós o compromisso de educaramplamente contra o racismo. Boa parte da incompreensão sobre medidas especiais para a superação das desigualdades raciais decorre dodesconhecimento do que todos podem usufruir de uma sociedade democrática, pluralista, fraterna e sem preconceitos. Por outras palavras, é preciso enfatizar o que todos perdemos com a manutenção do atual quadro de desigualdades raciais e fortalecer uma cultura de inclusão.Um outro ponto vital é a articulação entre as medidas especiais, como ascotas, e as reformas estruturais. Precisamos assegurar a proteção necessária aos negros e afro-descendentes em geral, sem a qual não eles não podem exercer direitos humanos e liberdades fundamentais. Mas precisamos também combater as causas dessa vulnerabilidade. Se é preciso, imediatamente, assegurar o ingresso no curso superior, faz-se necessário, também com a mesma urgência, conquistarmos a universalidade da pré-escola e a garantia doensino fundamental e médio numa escola pública de qualidade. A articulação entre as medidas de curto prazo e aquelas de médio e longoprazo evitam, por um lado, as superficialidades demagógicas, quando se fala de cota pela cota, e, por outro lado, impedem que se projetem apenassoluções para um futuro remoto, quando idealmente todos os problemas serão resolvidos. Além das ações afirmativas, precisamos redefinir as chamadas políticasuniversalistas. As pesquisas oficiais ou não sobre as desigualdades raciaisreconhecem todas que os negros são os mais pobres dentre os pobres. No entanto, a implementação de políticas e programas sociais de combate à pobreza e à exclusão não contempla um recorte racial. Se colocássemos no centro de todos as políticas e programas apreocupação com a superação das desigualdades raciais, se todas essasiniciativas fossem obrigadas a dimensionar seu impacto sobre asdesigualdades raciais, com certeza venceríamos a persistência de índices eindicadores que parecem querer perpetuar a subalternização da populaçãonegra. A proposta de emenda constitucional que apresentamos no iníciodesta legislatura à Mesa do Senado Federal (PEC n° 02 de 2003) incluientre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil erradicaras desigualdades raciais (art. 3°) e altera também o caput do Art. 79 dasDisposições Constitucionais Transitórias, que institui o Fundo de Combate eErradicação da Pobreza, incluindo a superação das desigualdades raciaisentre os seus objetivos. Precisamos trabalhar em muitas frentes, se queremosefetivamente consolidar nosso processo democrático - profundamentecomprometido com a exclusão dos afro-descendentes.* Paulo Paim é Senador do PT/RS e Primeiro Vice-Presidente do Senado Federal