Artigo publicado nos sites Brasil 247 e Sul 21 Sim, um outro sistema prisional é possível (1ª parte)Senador Paulo Paim O sistema prisional brasileiro é hoje claramente inadequado e não atende aos objetivos de punir e de ressocializar. Segundo relatório de 2009 da ONG Human Rights Watch (HRW), as prisões no Brasil estão em condições desumanas. São locais de tortura física e psicológica; violência; superlotação; péssimas condições sanitárias e de ventilação; má-alimentação; abandono material e intelectual; proliferação de doenças nas celas; maus tratos; ociosidade; assistência médica precária; pouca oferta de trabalho; e analfabetismo. Como se não bastasse, há situações esdrúxulas, como mulheres presas junto com homens ou homens presos em contêineres, bem como desproporcionalidade na aplicação de penas e prisões cautelares sem motivação adequada e por mais tempo que o previsto.O quadro desenhado pela HRW em 2009 é o mesmo que foi pintado pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, que visitou entre os dias 18 e 28 de março deste ano várias instalações prisionais no Brasil, incluindo-se, aí, prisões, delegacias, centros de detenção e instituições psiquiátricas, em Campo Grande, Fortaleza, Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. A prisão é uma das várias formas que o direito penal estabelece como punição a condutas consideradas incompatíveis com a vida em sociedade. A prisão é destinada para aqueles indivíduos que agiram mais gravemente, causando danos consideráveis aos seus semelhantes, tornando necessário que sejam isolados do convívio social. A perda de liberdade é pena terrível, seja por um dia, seja por um mês, seja por um ano, seja, quem sabe, por trinta anos. Mas a prisão foi criada como instituição modernizadora em razão dos ideais iluministas do século XVIII e XIX. Basta lembrar que antes do conceito moderno de prisão, vigoravam, por exemplo, penas como banimento, degredo, submissão a suplícios corporais, mutilações, bem como a possibilidade de penas serem passadas de pai para filhos e outros elementos claramente desumanos. A obra literária Os miseráveis, do escritor francês Victor Hugo, é representativa dessa realidade e mostra os horrores da pena de galés, ou seja, trabalho forçado.A pena de prisão, pois, veio como um progresso, uma forma de concretizar as ideias do iluminismo, como a crença no progresso, na razão e na possibilidade de recuperação e melhora do indivíduo. A pena de prisão, portanto, não representava apenas a punição, mas a sugestão da possibilidade de que os infratores poderiam ser reeducados e recuperados para o convívio social sadio. É inegável que em determinadas situações não existem alternativas: é preciso punir com a pena de prisão. A questão é que justiça é outra coisa, pois, lembrando o título de um livro de autoria de Simon Wiesenthal, Justiça não é vingança. Justiça exige que o Estado saiba se comportar e saiba tratar de maneira adequada os cidadãos que se encontram sob sua custódia. Essa, aliás, é a base do Estado Constitucional, o qual estabelece limites claros para as ações estatais. O Estado não pode tudo. O Estado deve se restringir aos limites que lhe são impostos por uma sociedade democrática e que estão estabelecidos em um texto constitucional.Em nosso caso, o Estado deve, sobretudo, se ater àquilo que está na Carta de 1988, cujo tijolo fundamental, sobre o qual se estruturam todos os outros, é o princípio da dignidade da pessoa humana. Desrespeitado esse princípio, a democracia se desfaz no ar. O jurista brasileiro George Marmelstein, em seu Curso de direitos fundamentais, estabelece que a dignidade da pessoa humana se manifesta pelo respeito à autonomia da vontade, pelo respeito à integridade física e moral, pela não “coisificação” do ser humano e pela garantia do chamado “mínimo existencial”.Infelizmente, a dignidade da pessoa humana é algo escasso nas prisões brasileiras, a despeito das garantias prescritas tanto na Constituição, quanto na legislação penal. Como observa o jurista Walter Maierovitch, “na nossa lei de execução penal está escrito, entre tantos dispositivos (…) ter o preso direito às assistências material, educacional, social, à saúde, jurídica e religiosa, além do apoio ao egresso do sistema, até para evitar a recidiva (…) quanto às celas, está estabelecido que sejam individuais, com seis metros quadrados de área mínima, salubridade do ambiente por meio de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana”. Além disso, o próprio texto constitucional, no artigo 5º, assegura aos presos o respeito à integridade física e moral, além de vedar a prisão perpétua, e as penas de trabalhos forçados, de banimento ou que sejam cruéis.A realidade não condiz com o disposto em nossas leis. Os números do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostram a existência de 514 mil presos e de apenas 306 mil vagas, ou seja, um sistema carcerário superlotado e com presos vivendo em condições degradantes. Por outro lado, esse número superior a 500 mil encarcerados não significa que a polícia seja eficiente. Pelo contrário. O professor Neemias Moretti Prudente, em artigo publicado na Revista do Ministério Público Militar, de novembro de 2011, aponta que “o índice de punição de crimes é inferior a 10%” e, “se a polícia fosse mais eficiente, o poder público não teria onde colocar tantos presos e a superlotação seria maior”. Neemias informa que quase 60 mil pessoas se encontram encarceradas em delegacias, pois as peniteciárias e os cadeiões não comportam e não dispõem de infraestrutura adequada. Ele acrescenta, ainda, uma interessante informação a respeito do perfil do preso brasileiro: “a população carcerária brasileira compõem-se de 93,4% de homens e 6,6% de mulheres”. Em geral, são jovens com idade entre 18 e 29 anos, afrodescendentes, com baixa escolaridade, sem profissão definida, baixa renda, muitos filhos e mãe solteira (no caso das mulheres). Em geral praticam mais crimes contra o patrimônio (70%) e tráfico de entorpecentes (22%). A média das penas é de quatro anos.Essas condições, é claro, não são exclusividade de uma ou duas unidades da Federação. As más condições prisionais se repetem em praticamente todos os Estados e no Distrito Federal.(Segue...) Sim, um outro sistema prisional é possível (2ª parte)Senador Paulo Paim Segundo artigo de autoria de Fábio Duarte Fernandes, os dados coletados no Departamento Penitenciário Nacional, subordinado ao Ministério da Justiça, demonstram que a população carcerária, em sua grande maioria é composta de presos pobres, com poucos recursos pessoais, suscetíveis às influências do momento e vulneráveis às ações arbitrárias e violentas. Embora sejam pouco agressivos acabam sendo cooptados pelas lideranças do crime organizado. Estas circunstâncias demonstram que o método de concentração de apenados em grandes complexos penitenciários e unidades prisionais como o Carandiru (já desativado em São Paulo), Frei Caneca, Central de Porto Alegre e Bangu no Rio de Janeiro é obsoleta e onerosa para os parcos recursos disponíveis para manutenção, custeio e investimentos no setor. Enfim, o sistema prisional brasileiro é caótico, ultrapassado, ineficiente. É, sobretudo, injusto e comprovadamente incapaz de recuperar o apenado, haja vista que a taxa de reincidência é de aproximadamente 70%, segundo dados do CNJ. É possível um outro sistema prisional? Sim, porque o atual sistema carcerário no Brasil está completamente falido. Eu acredito, ou melhor, tenho a mais firme convicção de que um outro sistema prisional é possível. ALGUMAS SUGESTÕES Uma solução é evitar que as pessoas precisem ir para a cadeia. Isso é o que aponta o texto do professor Neemias. Segundo ele, “uma solução adotada em alguns países, como o Reino Unido, é reservar as prisões somente para os criminosos considerados perigosos, que oferecem risco à sociedade, como o homicida ou quem comete crime sexual. Amplia-se, assim, a utilização de penas e medidas alternativas (à prisão), com acompanhamento (e fiscalização) dos condenados pelo Estado e pela sociedade. Com certeza, as possibilidades de recuperação de quem cometeu um delito considerado leve ou médio são comprovadamente muito maiores quando o condenado não cumpre sua pena em regime fechado. Além disso, as chances de a pessoa reincidir são menores – em torno de 12%”. Então, a primeira estratégia é diminuir o número de pessoas enviadas para os presídios. Isso, aliás, é o que foi apontado pela CPI do Sistema Carcerário, conduzida pela Câmara dos Deputados em 2009. Em seu relatório final, a CPI apontou que a concretização das penas alternativas ainda está emperrada porque “o Poder Judiciário não tem uma cultura de confiança nas penas alternativas. Seja pela inexistência de sistemas adequados de fiscalização, ou de casas de albergados, ou mesmo de acompanhamento dos resultados dessas penas, muito poucos juízes as utilizam”. A CPI ainda apontou a necessidade de criação de núcleos ou centrais destinadas ao monitoramento e à fiscalização da execução das penas e medidas alternativas, com uma estrutura mínima, interdisciplinar, com a participação de psicólogos e assistentes sociais, ainda que, segundo informações apuradas, somente 10% das comarcas mantenham um controle do cumprimento de penas alternativas. Nos outros 90% dos casos, a aplicação das penas alternativas foge ao controle do Estado. A segunda estratégia passa pelo incremento da Justiça Reparativa, que consiste na reparação de danos eventualmente causados a uma pessoa em vez de punir o responsável pelo dano. Isso não estigmatizaria o autor do delito, mas garantiria que a vítima fosse devidamente reparada no dano que sofreu. A terceira estratégia consiste em responsabilizar o Poder Público pelo não cumprimento daquilo que for determinado pelas regras de execução penal. A quarta estratégia passa por mudanças no sistema penal, de modo a, por exemplo, reduzir o número de tipos penais, buscando racionalizar o sistema penal. A quinta estratégia visa racionalizar e modernizar o sistema processual penal, garantindo, por exemplo, a aplicação mais consistente do princípio da insignificância, o que permitiria ao Estado se concentrar na punição dos crimes mais graves ou, ainda, buscar mais consistentemente os meios de assegurar a transação penal e a suspensão condicional do processo em razão do cumprimento de penas alternativas. A sexta estratégia é melhorar a assistência jurídica aos mais pobres, ampliando a possibilidade de o preso ter efetivamente fiscalizado o cumprimento da pena, o que evitaria a situação tão comum de encontrarmos pessoas que remanescem nos presídios por mais tempo do que o determinado em sentença condenatória. A sétima estratégia diz respeito ao investimento em meios tecnológicos, caso das tornozeleiras eletrônicas, cujo uso deve se tornar ainda mais frequente. A oitava estratégia, por fim, trata do investimento em parcerias público-privadas. Parece bastante razoável imaginar que os presos por infrações leves cumpram pena em presídios administrados pela iniciativa privada. Há algumas experiências em andamento no Brasil, caso de Estados como Ceará, Minas Gerais e Santa Catarina. Aí, é possível imaginar um sistema que não se reduza ao mero encarceramento, mas que proporcione ao preso que cometeu crimes mais leves a possibilidade de receber educação formal ou treinamento profissional que o habilite a levar uma vida digna quando estiver de volta ao pleno convívio social. Enfim, a situação dos presídios brasileiros é gravíssima. É um ambiente nocivo na medida em que não recupera o preso, mas o transforma em um criminoso mais perigoso.A segurança pública, ensina o jurista Walter Maierovich, é um tripé que compreende: polícia, justiça e sistema prisional. Se não atentarmos para esse último, a segurança pública se transforma em uma miragem. Por fim, lembro de uma reflexão do grande líder sul-africano Nelson Mandela. Segundo ele, “Se quiseres conhecer a situação socioeconômica do país, visite os porões de seus presídios”. Tal pensamento diz muito a respeito de nós brasileiros e do quanto falta para que o Brasil se torne, enfim um país justo e igualitário.