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30.Novembro
O Estatuto da Terra

Senhor Presidente,Senhoras e Senhores Senadores.Neste mês, o Brasil deveria estar comemorando mais um aniversário da vigência do Estatuto da Terra. Quando da sua instauração em 1964, o Estatuto da Terra parecia inaugurar uma nova era no desigual e violento desenvolvimento rural do País.  Todavia, um olhar mais apurado sobre a realidade atual do campo brasileiro revela-se tão constrangedor quanto desalentador, para não sentenciar algo pior. Independentemente da boa-vontade detectada na fala e nos gestos de alguns dirigentes que nos presidiram nas últimas décadas, nada parece alterar as condições centralizadoras e latifundiárias do extenso território nacional.  A alta concentração de terras nas mãos de uns poucos proprietários rurais constitui identidade inabalável da cultura expansionista de nossa oligarquia rural.  As contradições ideológicas infestam essa matéria. Se não, vejamos. A reforma agrária, de utopia nos meados do século 20, virou a desgraça nacional no imaginário popular mais recente.  Patrocinadas por grupos radicais, as recorrentes invasões de terras têm mais transmitido sinal de insegurança e de barbárie primitiva aos contribuintes e aos cidadãos brasileiros. Afinal de contas, as ações dos movimentos camponeses pela posse de terras têm-se destacado mais pela intransigência nas negociações do que pela eficácia produtiva quando da apropriação.    Por isso mesmo, Senhor Presidente, recordar faz-se aqui necessário. Mais precisamente, o Estatuto da Terra foi concebido como a forma a partir da qual legalmente se encontrariam disciplinados o uso, a ocupação e as relações fundiárias no Brasil.  Conforme o documento assinado em 1964, o Estado teria a obrigação de garantir o direito de acesso à terra para quem nela vive e trabalha. Detalhe importante nessa lei é a sua origem. Tido como de lavra ideológica pelos conservadores, o Estatuto da Terra surgiu em pleno limiar do regime militar.  Foi aprovado pelo Congresso Nacional com os militares no poder. Esse fato tem explicação.  No final da década de 1950 e início da de 1960, pipocavam em quase toda a América Latina as tensões sociais no campo. Estávamos no auge da guerra fria, com o mundo polarizado entre as duas potências de então, Estados Unidos e União Soviética. Segundo estudiosos da história da ditadura brasileira, dessas contingências resultou o projeto do estatuto com a ingerência transversal dos Estados Unidos.  Fato de não menor relevância, o seu coordenador foi o todo-poderoso ministro Roberto Campos, que comandava a economia nos primeiros anos do regime militar. Senhor Presidente, um dos primeiros códigos inteiramente elaborados pelo Governo Militar no Brasil, a Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964,... ... foi concebida como forma de impor um freio aos movimentos campesinos de esquerda que se multiplicavam durante o Governo João Goulart.  Em parte, a estratégia diversionista dos militares funcionou com relativo sucesso, dissuadindo pela coerção discursiva toda mobilização rural a favor de uma autêntica reforma agrária.  Prova disso é que o Estatuto da Terra abrigava um cipoal normativo de controverso entendimento.  Apesar de dispor de importantes peças para o ordenamento jurídico brasileiro, seu conteúdo é ainda muito pouco difundido e conta com poucos especialistas no meio doutrinário.  Mesmo assim, combatido por uns, elogiado por outros, a verdade é que o Estatuto da Terra é uma lei que, ao longo de seus 50 anos de vigência, tem despertado o interesse de estudiosos de todo o mundo. Países europeus, como Espanha, Itália e França, estão entre os que mais o pesquisam.  No contexto da América Latina, a maioria das nações integrantes ainda guarda forte interesse pelo estudo de nossa legislação agrária. Por esse breve panorama, já se deixa entrever que o nosso estatuto é uma lei que merece ser objeto de reflexão.  Não por acaso, na visão dos juristas mais ortodoxos, o Estatuto da Terra ainda representa uma das mais importantes molduras da lei agrária brasileira e uma das mais completas do ordenamento jurídico do País. Não seria de todo descabido declarar que, embora seus conceitos abarquem definições de cunho inteiramente político,...  ...servem ao menos para nortear as ações de órgãos governamentais de fomento agrícola e de reforma agrária, como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra.           Sem dúvida, Senhor Presidente, as metas estabelecidas pelo Estatuto da Terra em novembro de 1964 eram basicamente duas.               Enquanto a primeira lidava com a execução “fictícia” de uma reforma agrária, a segunda tratava do desenvolvimento da agricultura, propriamente dito.                 Cinco décadas depois, podemos constatar que a primeira meta ficou apenas no papel, ao passo que a segunda recebeu grande atenção dos governos, principalmente no que diz respeito ao desenvolvimento capitalista ou empresarial da agricultura.  Ideologias à parte, a verdade é que o Estatuto foi elaborado por uma equipe de alto nível. Na ocasião, seus integrantes foram selecionados a dedo nas melhores universidades e institutos de pesquisa das áreas do direito agrário e afins.  Para os especialistas, desse processo resultou uma lei muito avançada para o seu tempo. Todo o nó do Estatuto da Terra se entrelaça nesses dois polos estruturalmente antitéticos, dos quais se destacaram o primo rico e o primo pobre.  O que andou e o que se arrastou. No que dependeu das ações do Poder Público, poucos itens tiveram desempenho relevante.  Dois casos merecem, entretanto, breve destaque: Incra e Embrapa. Bem ou mal, o Incra tem uma estrutura administrativa implantada em todo o País, o mesmo ocorrendo com o seu cadastro. E a Embrapa, embora vinculada a setores diversos, tem suas raízes no Estatuto da Terra. Os demais arrastam-se a passos de cágado. O principal deles – a reforma agrária – se submete a subsequentes políticas equivocadas, com a mera distribuição de terras,... .... contemplando trabalhadores desqualificados, sem vocação agrícola e sem nenhuma estrutura de produção em escala. Limitou-se à precária economia de subsistência, expandindo a miséria no campo.  Diante de uma nova realidade no mundo de hoje, a reforma agrária caminha na contramão da história, jogando muitos recursos financeiros no ralo.Senhor Presidente, a rigor, a utilização e a ocupação de terras e as relações fundiárias em cada país são legalmente regulamentadas pelo estatuto da terra local.  No entanto, para perdurar por décadas adentro, cabe a cada realidade regional planejar convenientemente adaptações de métodos e ações. No Brasil, não nos custa nada observar, órgãos governamentais de interesse agrícola e reforma agrária têm na teoria e, às vezes, na prática suas ações e medidas ainda norteadas pela Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. Na mente dos mais ingênuos, os conflitos pela posse de terra são ocorrências recentes, frutos da desorganizada modernidade.  No entanto, eles existem pelo menos desde 1850, ano da Lei de Terras, que pretendia organizar a propriedade privada no Brasil. Aliás, sua principal finalidade consistia em evitar que imigrantes europeus e japoneses tornassem-se proprietários de terras, gerando concorrência aos latifúndios vigentes.  A partir da nova lei, autorizava-se apenas a aquisição de terras por compra, venda ou doação do próprio Estado. Naturalmente, tal enviesado ordenamento jurídico favorecia a má estrutura fundiária brasileira e privilegiava antigos fazendeiros. A reação dos camponeses somente veio a se manifestar na metade do século 20, quando a reforma agrária virou símbolo crucial de liberdade democrática nos debates entre classes sociais e partidos políticos.De fato, quando aprovado pelos militares em 64, o objetivo principal do Estatuto da Terra era frear e controlar as reivindicações populares e as tensões sociais que cresciam de maneira acentuada. Por outro lado, é verdade, sim, que tal projeto de lei, encaminhado na época ao Congresso, tornou institucional o dever do Estado em assegurar aos trabalhadores rurais o acesso devido à terra. Porém, não se tratava exatamente de uma transformação social para criar oportunidades, melhores condições de trabalho e melhor distribuição da riqueza para o povo.  Cumpre acentuar alguns pontos positivos ali contemplados, no meio dos quais o respeito à indenização de desapropriações de terra, a utilização apropriada do terreno pelo proprietário, de modo que o usufruto econômico favorecesse seus trabalhadores e suas respectivas famílias e, por fim, o alerta embrionário à preservação ambiental para que os recursos naturais fossem utilizados de maneira ecologicamente apropriada. E mais. Lá também estão encerrados dispositivos que promovem a manutenção dos níveis satisfatórios de produtividade do campo, convocando todos para uma funcionalização fundiária otimizadora entre o minifúndio e o latifúndio.  Nessa medida, visava-se a assegurar melhores condições para a legalidade nas relações trabalhistas entre os que cultivam e os que possuem a terra. Enfim, a instalação do Estatuo da Terra foi um emblemático acontecimento nos anos 60, mas que ainda reflete diretamente na atual circunstância agrária em que o País se encontra.  Os movimentos sociais, como o MST, consequentemente, fomentam aí seus protestos, com a intenção de consolidar a reforma agrária como........ uma política pública permanente, e não somente uma forma de apaziguar o conflito gerado pelos manifestantes.Para concluir, Senhor Presidente, nada mais natural que saudarmos todos aqueles que ainda sonham com uma divisão mais justa e produtiva do campo brasileiro.  Independentemente das intenções e dos resultados derivados da instituição do Estatuto da Terra, o certo é que o movimento rural ainda persiste porque a questão da distribuição mais igualitária da terra ainda não foi devidamente solucionada.  Para tanto, enfim, será preciso muito mais do que leis: será preciso, sobretudo, vontade política das elites, dos líderes políticos e das lideranças sindicais e agrárias do País. Sala das Sessões, 30 de novembro de 2015.Senador Paulo Paim.