O mundo sempre foi cruel com os deficientes. A Grécia antiga, por exemplo, valorizava o vigor físico. Por essa razão, os bebês que nasciam com algum tipo de deficiência eram abandonados ou sacrificados. Com a hegemonia do cristianismo na Idade Média, os europeus passaram a aceitar os deficientes como filhos de Deus. Eles, porém, não tinham o direito deviver em sociedade e eram enviados para instituições religiosas, onde eram mantidos enclausurados. A Inquisição mandou muitas pessoas com deficiência intelectual para a fogueira. A dificuldade de interação social era por vezes tomada como atitude demoníaca. No século passado, os nazistas as levavam para campos de concentração, onde eram cobaias de violentos experimentos científicos, faziam trabalhos forçados ou eram simplesmente executadas. No Brasil, deficientes intelectuais eram internados em hospícios até o início dos anos 2000. Segundo especialistas, quanto mais se estimulam essas pessoas desde a infância, maiores são as chances de se desenvolverem e se tornarem mais autônomas. Já há pessoas com síndrome de Down que se formam na universidade, o que antes era impensável. No passado, as famílias escondiam os filhos deficientes, e o isolamento minava qualquer possibilidade de crescimento. De acordo com a psicóloga Ana Cláudia Bortolozzi Maia, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), as famílias ainda têm se omitido na educação sexual dos filhos com deficiência. Muitas, diz ela, acreditam erroneamente que eles não têm sexualidade. — Acham que o filho é incapaz e o tratam eternamente como criança, mesmo quando ele já é adolescente ou adulto. Eles são como todo mundo. A sexualidade está lá e vai se manifestar. A educação sexual adequada evita que engravidem, contraiam aids e sofram abuso e permite que tenham uma vida afetiva e sexual saudável. Ana Cláudia trabalha há 18 anos com a sexualidade de pessoas com deficiência. De acordo com ela, a inclusão vem avançando a passos tão largos que os estudos acadêmicos, hoje muito focados nas famílias de pais sem deficiência que têm filhos deficientes, brevemente sofrerão uma reviravolta e passarão a se debruçar sobre os desafios dos pais com deficiência intelectual que têm filhos sem deficiência. Prisão Paulo Paim apresentou o projeto do Estatuto da Pessoa com Deficiência em 2000, quando era deputado. Preocupado com a falta de interesse pelo tema na Câmara, redigiu uma segunda proposta em 2003, quando chegou ao Senado. No caminho, as duas propostas acabaram se fundindo. Em 2015, a versão final foi aprovada pela Câmara e pelo Senado e sancionada pela Presidência da República. A lei entrou em vigor em janeiro de 2016. Com o estatuto, tanto os deficientes intelectuais quanto os físicos — como surdos, cegos e cadeirantes — deixaram de ser cidadãos de segunda classe. A nova lei obriga a sociedade a remover os obstáculos e a oferecer a ajuda necessária para que tenham acesso pleno a todos os direitos básicos, como a educação, a saúde, o trabalho. Na questão educacional, o estatuto prevê que as escolas regulares estão obrigadas a aceitar alunos com deficiência. Para que a nova lei não se torne letra morta, há a previsão de penas pesadas para quem desrespeita os direitos dos deficientes. A própria discriminação é punida com a prisão. O Estatuto da Pessoa com Deficiência fez mudanças numa série de leis, como a Consolidação das Leis do Trabalho, o Código de Trânsito Brasileiro e o Estatuto da Cidade. Alterações no Código Civil removeram os entraves ao casamento. O Código Civil agora considera incapaz a pessoa que, por algum motivo, não consegue expressar a própria vontade. Isso afeta quem tem deficiência intelectual grave e deixa livre quem sofre de um deficit cognitivo leve. — Antes a lei já partia do pressuposto que o deficiente intelectual era incapaz. Agora presume que ele tem capacidade para decidir sobre a própria vida. Basta que ele diga que deseja se casar — afirma a promotora Aymara Borges, do Ministério Público do Distrito Federal. A exigência de autorização judicial para o casamento tinha o objetivo de proteger o deficiente de pretendentes oportunistas, que estavam de olho apenas no patrimônio do futuro cônjuge. A decisão do juiz ainda é necessária quando um dos noivos não consegue manifestar sua vontade. Os cartórios tiveram que se adaptar. Se antes estava nas mãos dos juízes, agora cabe aos oficiais dos cartórios a responsabilidade por liberar o casamento de pessoas com deficiência intelectual. — É uma missão que nos exige sensibilidade — diz o presidente da Associação dos Notários e Registradores do Estado de São Paulo, Leonardo Munari de Lima. — Temos que perceber no balcão se a pessoa com deficiência está ou não sendo coagida ao casamento. Quando temos dúvida, nós a chamamos para uma conversa reservada em outra sala para sentir se essa é de fato a vontade dela. Primeira união O que é mais comum são os casamentos entre duas pessoas com deficiência intelectual. Isso se explica pelo passado recente de segregação. Deficientes só conviviam com deficientes. A tendência é que, com o estatuto, isso mude. Frequentando todos os ambientes e participando mais da sociedade, os deficientes intelectuais passarão a se casar com pessoas sem deficiência. Um casamento assim ocorreu em fevereiro no cartório da pequena cidade de Artur Nogueira (SP) — foi a primeira união oficializada no país graças à nova lei. O jardineiro José Francisco Dias, de 53 anos, se casou com a dona de casa Rosana de Lima Dias, de 44 anos. Quem tem deficiência é ela, vítima de uma paralisia cerebral quando era bebê. Ela fala e caminha com dificuldade. O casal está junto há 20 anos e tem um filho de 18. — Quando eu era moça, minhas primas disseram que ninguém iria gostar de mim. Acabei acreditando que eu nunca iria me casar — ela conta. José Francisco diz que não olhou apenas a deficiência dela: — Quando a pedi em namoro, ela ficou assustada: “Mas você não vê como eu sou?”. Respondi que sim, mas queria conhecer o que ela tinha por dentro. Nestes 20 anos, ouvimos muitas risadas de deboche, mas a nossa união sempre foi maior do que o preconceito. Ela é uma ótima esposa e uma mãe exemplar. Não posso reclamar da vida. |