Tempo de olhar mais alémAs asas da liberdade, que conduzem nossas aspirações, transformam sonhos em realidade, dão vida a projetos, restituem o sono e transformam palavras em gestos, são o nosso bem mais precioso. Um homem liberto é alguém capaz de viver a sua plenitude, de se dirigir ao mundo com uma visão capaz de reconhecer o direito do outro como um limite a ser respeitado. Todo ser humano deseja ser livre, deseja poder respirar os bons ventos chamados escolhas. Mas, infelizmente, nem sempre eles sopram para todos.Nunca é perdido o tempo dedicado ao trabalho. A frase proferida pelo escritor, filósofo e poeta norte-americano, Ralph Waldo Emerson, no século XIX, não é válida para muitos brasileiros. Pessoas que trabalham de sol a sol, sem as menores condições de trabalho, enfrentando o desrespeito à sua dignidade. Homens e mulheres, adultos e crianças, que dedicam muito tempo de suas vidas a determinadas atividades e, assim, perdem a oportunidade de viver. São pessoas que não têm o direito de exercer sua cidadania, são aqueles que trabalham em regime de escravidão.Nesse ponto veremos que alguns se levantarão e dirão que a escravidão não existe desde a assinatura da Lei Áurea. Mentira. A escravidão pode até não aparecer na forma de senzalas e açoites, porém, ela infelizmente ainda existe. E é justamente essa maneira mais sutil dela se apresentar em nossa sociedade que a torna tão vil. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a falta de liberdade é a característica principal do trabalho escravo. Ainda conforme a OIT, existem quatro formas mais comuns desse tipo de regime se apresentar: a servidão por dívidas, a retenção de documentos, a dificuldade de acesso ao local onde o trabalho se desenvolve e a presença de pessoas armadas fiscalizando as atividades desenvolvidas. Formas essas previstas em nosso Código Penal.Para combater isso, desde 2002 a OIT e o governo federal iniciaram o projeto de cooperação técnica Combate ao Trabalho Forçado no Brasil. No mesmo ano, a Comissão Especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), que reúne entidades e autoridades nacionais ligadas ao tema, institui o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, o qual atende às determinações do Plano Nacional de Direitos Humanos e expressa uma política pública permanente.De lá para cá já avançamos muito. O ministério do Trabalho e Emprego, juntamente com o Ministério Público, tem trabalhado para libertar as pessoas que se encontram em sistema de escravidão. Assim, divulga semestralmente a lista das empresas e pessoas autuadas por exploração do trabalho escravo, a chamada lista suja. A última atualização data de 29 de dezembro de 2008 e traz 199 nomes. Desses, a maioria estão nas regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste. No Norte do país são 83 casos, distribuídos da seguinte forma: Pará, 50; Tocantins, 29; Rondônia, 2; Acre, 1 e Amazonas, 1. A região Centro-Oeste tem com 58 registros: Goiás, 29; Mato Grosso do Sul, 16 e Mato Grosso, 13. O Nordeste registra 47 nomes, sendo 32 no Maranhão, dez na Bahia, dois no Ceará, dois no Piauí e um no Rio Grande do Norte. O Sul do país tem sete casos (Santa Catarina, 4; Paraná, 2 e Rio Grande do Sul, 1) e o Sudeste quatro (Minas gerais, 3 e Espírito Santo, 1). Ainda de acordo com os números do ministério, de 1995 a março deste ano, 32.938 pessoas foram resgatadas em 792 operações.Os resultados levaram a OIT a considerar o Brasil um exemplo a ser seguido no que diz respeito ao combate e a erradicação do trabalho escravo. Nesse contexto, é fundamental a aprovação da PEC 438/01 que prevê a desapropriação de terras onde sejam encontrados trabalhadores em situação análoga à de escravo. Desapropriação essa que apenas ocorrerá após todos os procedimentos legais e administrativos terem sido efetivados. A proposta se encontra pronta para votação no plenário da Câmara dos Deputados. Ao mesmo tempo em que lutamos para a aprovação da PEC, é importante buscar meios de gerar mais emprego e renda, de levar conhecimento às vítimas e as possíveis vítimas, de proporcionar segurança no ambiente de trabalho e de investir mais em educação e qualificação priorizando as regiões de origem, já que sabemos que a falta de políticas locais é uma das razões que levam os trabalhadores a aceitarem trabalhos em outras regiões. Por pensar assim, apresentei em 2005 a PEC que institui o Fundo de Desenvolvimento da Educação Profissional, o Fundep. É preciso ainda intensificar o processo de reforma agrária. Também é importante que se aprove o PLS 226/07, de nossa autoria, que determina regras como jornada de trabalho, seguro de vida e participação nos lucros para os canavieiros. De mesmo modo, apresentamos e precisamos aprovar o PLS 487/03 que veda a concessão de incentivo fiscal e financiamentos de qualquer espécie por parte do Poder Público ou de entidade por ele controlada direta ou indiretamente, a pessoa jurídica de direito privado que utilize no seu processo produtivo, ou de seus fornecedores diretos, mão-de-obra baseada na degradação humana ou trabalho escravo.A importância do tema me levou a, como presidente da Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado, criar a Subcomissão Temporária de Combate ao Trabalho Escravo a qual, conforme requerimento do senador José Nery, passou a funcionar de forma permanente.É necessário lembrar que pessoas, do campo e da cidade, ao terem suas liberdades cerceadas, têm também outros direitos suprimidos. A velhice não lhes está garantida. São homens e mulheres que não têm direitos trabalhistas e que, conseqüentemente, não terão direitos previdenciários. O que se faz a essas pessoas viola os Direitos Humanos, e, ressalte-se, o Brasil é um dos países que busca cumprir as Metas do Milênio, é signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Indo mais além, o desrespeito aos Direitos Humanos via maus tratos, torturas e afins, por sua vez se configura crime, passível de pena. Assim, a Justiça deve ser efetivada e a fiscalização intensificada. Daí a importância de investimento em mais Varas e em profissionais para o trabalho de campo. Os culpados pela prática de trabalho escravo devem ser denunciados. Também é fundamental que os culpados sofram punições financeiras pesadas. E isso implica em multas altas, confisco de terras e cortes ou proibição de recebimento de financiamento. A divulgação dos nomes dessas empresas feita pelo ministério do Trabalho serve para subsidiar as consumidoras de produtos a recusarem produtos de empresas sujas e sim investirem naquelas comprometidas socialmente.Abrir os nossos olhos para uma realidade cruel pode causar muita tristeza e dor, mas é certamente o primeiro passo para cortar o mal pela raiz, para extirpar a ferida, para curar o machucado. Quando nos damos conta de que muitos homens e mulheres estão sendo tratados como bichos enjaulados em total servidão, precisamos fazer o máximo para poder devolver-lhes suas asas, suas liberdades. Esse abrir os olhos deve partir de cada um e alcançar as instituições.Retirar esses brasileiros de uma condição subumana passa a ser uma obrigação inadiável. Assim, é preciso olhar para aqueles que sequer têm consciência de que podem ter voz e direitos. É urgente que nós, pessoas que buscam a construção de um país melhor, mais solidário e igualitário, mostremos que o tempo e o trabalho dedicado a essa busca, esse sim, não será perdido.Não podemos permitir que nossos semelhantes sejam cerceados em seus direitos. Não podemos deixar que eles padeçam do mal da falta de solidariedade. Precisamos ser ferramentas capazes de libertá-los, pois assim estaremos libertando seus ideais, sua vontade de vida, sua sede de justiça social, seu profundo desejo de ser respeitado. Precisamos devolver a vida a essas pessoas. Enquanto houver um único trabalhador em condição de escravo, nós não seremos uma nação livre, afinal uma nação livre é feita de pessoas que sabem que suas escolhas permanecem intocáveis. Toda vez que uma cerca da servidão se rompe, abre-se a porta de uma vida nova. E, quando homens e mulheres ultrapassam essas cercas, o horizonte diante deles volta a tornar-se o que sempre deveria ter sido, um espaço de infinitas possibilidades e de pessoas aguardando-as de coração e mãos abertas.Senador Paulo Paim (PT/RS)