Dados estatísticos apresentam baixa representatividade nas câmaras municipais, prefeituras, Assembleia Legislativa e Câmara dos Deputados. Políticos e especialistas afirmam que isso interfere na democracia
William Martins e Caren Rodrigues
No Rio Grande do Sul, cerca de 18,2% da população se autodeclara negra, uma porcentagem bem distante da nacional, que chega a 56%, conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). Na política, a proporção de negros que ocupam cargos eletivos é ainda menor, o que motiva movimentos negros gaúchos a buscarem maior representatividade nessa área. Segundo dados da pesquisa Desigualdades Sociais por Cor ou Raça do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os afrodescendentes gaúchos ocupam apenas 3,9% das vagas nas Câmaras Municipais, 1,8% na Assembleia Legislativa, 2,2% das prefeituras e não têm representante na Câmara de Deputados.
Para Paulo Paim (PT), único senador negro do estado, a educação é a maneira de transformar a sociedade e dar voz aos excluídos. “O que precisamos é ter maior representatividade do nosso povo negro nas bases e ter maior visibilidade nos meios de comunicação. Considero a educação a base de transformação de qualquer sociedade. A educação rompe barreiras, oferece voz para os que são excluídos, muda vidas e torna os sonhos realidade”, defende o senador.
A Beta Redação reuniu dados extraídos da pesquisa Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, publicada pelo IBGE, sobre a representação política negra no Rio Grande do Sul em comparação com os outros estados da região Sul.
Conforme as amostras das imagens, com relação ao primeiro gráfico, é possível observar que em um total de 489 prefeitos dos municípios do Rio Grande do Sul, 11 são negros. Em seguida, dos 4.910 vereadores gaúchos, apenas 190 são pessoas negras. Na Assembleia Legislativa, apenas um dos 55 deputados estaduais se autodeclara negro: Airton Lima (PL). Já na Câmara Federal, nenhum dos deputados federais gaúcho é negro.
O gráfico acima mostra a proporção de políticos negros e pardos eleitos nos estados da região Sul. O Rio Grande do Sul só tem o maior número de prefeitos que Santa Catarina nesta categoria. Nas três casas legislativas a ocupação de vagas pelos afros gaúchos é menor que nos outros dois estados da região sul.
Nadir Maria de Jesus, chefe do Departamento de Igualdade Racial da Secretaria de Direitos Humanos de São Leopoldo, aponta que a questão da falta de representatividade política vem de uma construção histórica. “É uma coisa que me incomoda muito e há muitos anos. Mas ao mesmo tempo é compreensível que o nosso povo, infelizmente, não acredite no que nós somos capazes de fazer. Porque fomos doutrinados assim, a nos sentirmos inferiores. E claro que não somos”, comenta. Para Nadir, cada negro poderia se colocar à disposição para concorrer e, com o aumento de candidaturas e eleitos, a democracia estaria realmente acontecendo no país.
Os negros na democracia
Na década de 1978, com o aprofundamento da Ditadura Militar no Brasil e com as violências constantes sobre a população negra, surge o Movimento Negro Unificado (MNU), que levantou diversas bandeiras a favor da população afrobrasileira. Esse movimento colaborou com a construção da Constituição de 1988, época em que a Câmara de Deputados contava somente com 11 parlamentares negros em um total de 559 eleitos. Daquele momento até o presente, a representação política dos negros teve poucos avanços.
O Brasil manteve negros em situação de escravidão por aproximadamente 400 anos. Esse período ainda causa consequências em diversos setores da sociedade, sendo a política um deles. Segundo Reginete Bispo (PT), socióloga, coordenadora do Instituto Akanni e suplente do senador Paim, a estrutura social ainda tem uma mentalidade escravocrata, por isso a baixa representatividade nos meios políticos. “O Estado República se forma a partir dessa premissa, de que a mão de obra é importante, que os negros são sub-humanos, que nós não temos capacidades cognitivas, intelectuais e nem força de vontade para ocupar um papel de relevância na sociedade”, afirma. Para Reginete, a democracia brasileira é instável justamente pela baixa representatividade étnico-racial dentro das instituições de poder.
Nadir reforça que são poucos os projetos criados visando o interesse negro e, mesmo tendo alguns que querem ajudar, é preciso representantes que vivem o racismo estrutural pelo qual a população passa no seu dia a dia. “Precisamos de alguém que saiba o que é pegar um ônibus lotado, que saiba o que é escolher entre a conta de água ou de luz para pagar primeiro. Precisamos de alguém que sai para trabalhar e deixa o filho sozinho, porque precisa do dinheiro dessa faxina”, ela diz.
Negros em movimento
Daiane Dias (PL) é a primeira mulher negra vereadora da cidade de Pelotas. Eleita em 2016, a política identifica dois problemas centrais que justificam poucos afrodescendentes concorrendo em pleitos e se elegendo para cargos nos poderes Executivo e Legislativo. Para Daiane, há falta de interesse dos partidos políticos em apoiar essas candidaturas e pouco engajamento dos próprios negros a favor desses candidatos.
A vereadora afirma que os partidos políticos não investem nas candidaturas de pessoas negras, inclusive em relação aos recursos financeiros do Fundo Eleitoral. “Não há uma potencialização efetiva dos partidos políticos para injetar (dinheiro) em campanhas de massa de homens e mulheres negras. Não vejo esse interesse e estímulo por parte dos partidos. É uma relação diferente até mesmo na distribuição de recursos partidários, como a própria questão do Fundo”, ressalta.
Além disso, há um ponto muito mais preocupante, segundo Daiane, que impede a ascensão de novos políticos que levem a representatividade negra para dentro dos espaços de decisão e poder. A falta de apoio e consciência dos negros para que façam parte da política é algo que a preocupa. A vereadora pelotense conta que concorreu pela primeira vez em 2012, quando buscou apoio nos movimentos da região e não obteve sucesso. “Em 2012 não me elegi por 300 votos. Procurei pessoas que fazem parte do movimento negro, que falam de negritude, da importância da nossa representação. Quando percebi, elas estavam apoiando pessoas não negras.
O discurso muitas vezes não existe na prática
Daiane conta que, antes, não estava ligada a movimentos negros nem a partidos políticos, mas que sempre buscou estar ativa, em busca de conhecimento. “A minha chegada na política se deu por eu ser uma negra em movimento. Uma negra que estudou, que buscou se qualificar, que foi conselheira tutelar, que sempre trabalhou com políticas sociais.”
A vereadora afirma, ainda, que tem dificuldade em entender como um negro consegue se sentir mais representado por alguém que não compreende suas necessidades e as desigualdades raciais existentes no Brasil. “Tenho certeza de que se houvesse maior engajamento nosso, com certeza teríamos maioria e maior representatividade. Não entendo como um negro, ao olhar o outro negro em um espaço de decisão, de poder, não se enxerga representado. Ou como ele consegue se sentir mais representado por alguém que é diferente dele, que não conhece as vivências, as necessidades”, questiona Daiane.
Desigualdade racial como motor para a desigualdade social
O senador Paim afirma que durante a crise da Covid-19, que colocou o mundo em quarentena, foi exposta a desigualdade social no Brasil. “O auxílio emergencial, aprovado pelo Congresso, evidenciou milhões de invisíveis. Essa população, em sua maioria, é negra. Em uma democracia é imprescindível que tenhamos igualdade de direitos, igualdade de oportunidades, justiça para todos, distribuição de renda. O Brasil é um dos países com a pior distribuição de renda no mundo”, conta o político.
A falta de representantes políticos negros também acaba causando um aprofundamento das desigualdades sociais, justamente porque muitas pautas que atingem diretamente a vida dessa população acabam não sendo levantadas ou tratadas da melhor maneira. Hoje, no Brasil, por exemplo, pessoas negras ganham menos do que as brancas. Conforme o IBGE, em 2018, o rendimento de pretos e pardos era de R$ 934, enquanto brancos recebiam, em média, R$ 1.846. Em relação aos números de violência no Brasil, conforme o Atlas da Violência de 2017, 75% das pessoas assassinadas no país eram negras. Isso quer dizer que as chances de um jovem negro ser vítima de homicídio no Brasil são 2,5 vezes maiores do que a de um jovem branco. São números que apresentam a falta de políticas públicas pensadas para tratar essas questões com um recorte racial.
Segundo Nadir Maria de Jesus, a desigualdade só será enfrentada verdadeiramente quando as pessoas negras tiverem representantes em espaços de decisão. “Vamos mexer nisso tudo quando nós tivermos os nossos representantes, com a caneta na mão, com o poder de decisão. Enquanto a gente não tiver isso, nós vamos ter, sim, apoiadores de outras etnias fazendo um projeto aqui e ali, às vezes para nos auxiliar, mas não são eles que sabem realmente o que é ser negro nesse país, nesse estado e nessa cidade”, completa.
Eleições municipais 2020
A democracia, sem que haja representatividade, não está cumprindo plenamente seu papel. Por isso, nas eleições municipais de 2020, marcadas para 4 de outubro, é esperado o aumento de candidaturas e de negros eleitos, abrindo mais oportunidades para a redução da discriminação racial no futuro.
Segundo Paulo Paim, uma das formas de mudar o cenário atual é a persistência na sustentação dos alicerces da democracia, pois, conforme o senador, são eles que promovem políticas públicas voltadas à população negra. “Não queremos a visibilidade da morte, queremos a vida para nossa gente. Precisamos eleger governantes, em todas as instâncias, comprometidos com essa causa”, pontua Paim.
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FONTE: BETA REDAÇÃO