ARTIGO
Karla Cristina Giacomin
Coordenação Geral da Frente Nacional de Fortalecimento à ILPI
Ponto focal International Longevity Center - Brasil
O valor da vida muda com a idade? A pandemia da Covid-19 expôs as vísceras da sociedade brasileira. Estão à mostra suas fragilidades em termos de coesão do tecido social, e suas potencialidades de exercer a solidariedade ao outro. Os jovens e adultos que morrerem pela Covid-19 não terão a chance de envelhecer. Muito velhos também terão morrido precocemente. A crise causada pela presença do novo coronavírus precisa se transformar em uma oportunidade de aprendizagem. Que ela sirva para lembrar a cada um que o direito a envelhecer com dignidade não se inicia aos 60 anos e ultrapassa em muito a adoção de comportamentos saudáveis ou o controle de enfermidades crônicas. Para que o direito se efetive, são necessárias políticas públicas acessíveis e efetivas ao longo de toda a vida.
Experimentar o envelhecimento como um ribeirinho da Amazônia, um sertanejo nordestino, um morador de rua da metrópole ou um gaúcho dos Pampas, são experiências muito diversas que demandam respostas diferentes das políticas públicas. Uma justificativa recorrente para a falta de políticas para idosos é o argumento de que o Brasil está envelhecendo rápido e antes de enriquecer. Contudo, essa situação está posta, não se modificará e precisa ser enfrentada.
Em um país que se recusa a envelhecer e para o qual velho é sempre o outro, a violência contra a pessoa idosa, seja no espaço doméstico ou institucional e aquela produzida pela ação ou falta de ação do próprio Estado encontram-se de tal modo banalizadas que sequer têm sido reconhecidas.
Se alguém ouvir a frase “Fulano é uma pessoa é negra de alma branca”, muitos serão capazes de perceber o preconceito racial embutido. Se ouvir que “a mulher tem culhões”, o sexismo é notado. Porém ninguém reclama quando escuta alguém dizer “Cicrano é um velho de espírito jovem”. O preconceito velado é tido como um elogio. Diante disso e talvez por isso, apesar de o envelhecimento da população exigir um redimensionamento de todas as políticas do país, este processo não tem sido considerado como elemento estruturante do planejamento de governos. Além disso, o próprio Estado promove um imaginário que aterroriza os idosos, ao responsabilizá-los pelos desequilíbrios da Seguridade Social, seja na previdência ou nas políticas sociais e de saúde (MINAYO, 2011).
E, embora a população idosa seja sabidamente grande usuária de serviços públicos de Saúde, da Assistência Social, da Previdência Social, do Transporte, da Justiça, da Cultura, diferentemente de outros públicos que contam com programas e ações concretos e estabelecidos, o público idoso ainda precisa ser notado na sua especificidade. O que explicaria essa invisibilidade?
Aqui adentramos em uma questão de fundo: a resistência da sociedade brasileira diante da perspectiva de envelhecer. No nosso país, a juventude deixou de ser uma etapa da vida para se tornar um valor a ser perseguido (DEBERT, 2010). A palavra “velho” foi quase proscrita do dicionário, compreendida como uma ofensa, haja vista a enormidade de eufemismos para essa etapa da vida: terceira idade, melhor idade, maturidade, juventude acumulada. Para Lins de Barros (2011), no imaginário social brasileiro, ser velho aparece associado a perdas, limitações físicas e nos papéis sociais, dependência, sofrimento, doenças e a morte. Talvez isso reflita o medo diante da dura e indesejável realidade de muitos brasileiros. Para Debert (1999) o processo pelo qual a velhice é compreendida como um problema de cada um e não uma questão social relevante para o Estado brasileiro configura a “reprivatização da velhice”.
Voltamos ao início: faltam políticas porque o Estado se nega a reconhecer o envelhecimento como sua responsabilidade ou a velhice continua invisível porque não há políticas públicas específicas?
Essa situação revela a cultura de uma sociedade, fundada em valores de consumo e individualistas, que tende a segregar, desprezar e encarar a pessoa idosa como alguém sem valor, afastado da produção e limitado em sua capacidade de consumo. Para trazer as questões do envelhecimento e do cuidado à pessoa idosa para dentro da gestão pública será necessário superar, além das dificuldades culturais, outras estruturais que afetam sobremaneira o direito ao envelhecimento com dignidade dos cidadãos brasileiros, e que são causa e efeito da violência contra a pessoa idosa.
Sem pretender esgotar o tema, dentre as inúmeras dificuldades estruturais destacam-se:
- a inexistência de uma política coordenada de Estado por um órgão específico cuja principal pauta seja o direito ao envelhecimento com dignidade e que ultrapasse os períodos de governo, com metas de curto, médio e longo prazo. Disso decorre a indesejada e usual descontinuidade de ações, nos três níveis de governo, com supressão, suspensão, fragmentação, junção de esferas administrativas, sujeitas a reinterpretações pelos governantes eleitos, que resultam na fragilização das políticas no território brasileiro;
- a tolerância ao descumprimento das leis de proteção à pessoa idosa pela sociedade e o desinteresse do Ministério Público pela causa, os quais contribuem para o não cumprimento das normas já estabelecidas;
- a dificuldade de pautar as políticas referentes ao envelhecimento da população e aos direitos dos idosos em fóruns da sociedade civil não ligados ao segmento idoso, nas várias políticas sociais e nos conselhos setoriais;
- a falta de recursos orçamentários destinados à proteção e à garantia do direito ao envelhecimento digno dos brasileiros;
- a burocracia e a superposição de ações de políticas que dificultam o entendimento e a atuação do Estado de modo intersetorial: enquanto os problemas se perpetuam pela falta de acesso a direitos. Como não há diálogo entre as políticas, ora elas competem entre si pelo orçamento, ora se superpõem, ora se omitem. Também não há agilidade na correção dessas falhas;
- a confusão entre o que seja uma política pública de fato e uma política “com donos” traduzida na expressão “os meus idosos”. Infelizmente essa situação revela a um só tempo o descrédito na capacidade da pessoa idosa de ser autônoma e o desejo do gestor de se perpetuar no cargo. Quando muda a gestão, as ações são descontinuadas, à revelia dos interesses da população idosa;
- o frágil controle democrático exercido por conselhos de direitos e de gestão das políticas setoriais, nas três esferas de governo, quanto ao cumprimento das legislações referentes ao envelhecimento e às pessoas idosas, inclusive o desrespeito às deliberações das Conferências Nacionais de Direitos da Pessoa Idosa e mais recentemente a destituição arbitrária do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa por decreto presidencial;
- o preconceito contra o envelhecimento (etarismo) que reverbera a visão pejorativa do velho como coitado, infantil, ultrapassado, sem perspectivas, incapaz de aprender coisas novas, além de reconhecer nele um ônus para o sistema de seguridade social e ainda
- o mau hábito de aguardar por uma solução mágica que virá do âmbito federal ou na forma de lei para os problemas cotidianos que afetam os serviços, reflexo de uma postura política passiva em uma lógica de relação paternalista governo-povo, ao invés do conceito de cidadania plena – com a participação da sociedade na construção das decisões do Estado. Essa mudança de comportamento dependerá do envolvimento e da pró-atividade dos próprios gestores, trabalhadores, familiares e idosos para otimizar os recursos disponíveis, dentro de cada política e na comunidade.
Na mesma direção, é importante fomentar a criação de fóruns intersetoriais junto a outras políticas e entidades não governamentais para tratar, por exemplo, da abordagem de situações e da notificação de casos de violência. O Art. 19 do Estatuto do Idoso (2003) preconiza que os casos de suspeita ou confirmação de violência praticada contra idosos serão objeto de notificação compulsória, pelos serviços de saúde públicos e privados, à autoridade sanitária, entre outros.
Por sua vez, cabe discutir: no amparo à velhice, quem define onde começa e onde termina o papel de cada um? Estado, família ou sociedade: qual é o lado mais frágil? A família representada na lei corresponde à família real? A mulher, historicamente cuidadora “natural” há muito tem assumido outros papeis, inclusive o de chefe de família e provedora.
Quem faz ou fará o que se espera dela? Como o Estado reconhece essa mudança? (ALCÂNTARA, CAMARANO, GIACOMIN, 2016)
Não existe mais “a família”, mas vários tipos e formatos de família, com vínculos mais frágeis, de menor tamanho e reduzido número de filhos e ou de potenciais cuidadores. A precariedade da solidariedade do Estado brasileiro é silenciada pela sobreposição da ideia de ingratidão familiar em relação à pessoa idosa que acompanha as denúncias de negligência e abandono nos processos que chegam ao Ministério Público.
Contudo, a opção de criminalizar a negligência e o abandono familiar não resolve a falta de estruturas de apoio para cuidar da velhice com dependência. Ao fazê-lo o Estado expõe um processo perverso pelo qual o próprio poder público viola direitos dos idosos ao abandonar a família que realmente não tem como lidar com tal dependência, especialmente aquelas de baixa renda, e ainda a culpabiliza, como se não se tratasse de outra vítima do desamparo estatal. Nessas, o cuidado com o idoso dependente não tem como acontecer eficazmente sem a transferência do apoio público, pois os custos financeiros, físicos e emocionais são altos demais.
O envelhecimento populacional brasileiro está posto. A pessoa idosa precisa ser ouvida em suas demandas e cuidada como público prioritário. Para fazer face à fragilidade dos sistemas de saúde e de assistência social, a perspectiva da intersetorialidade por meio da atuação conjunta com outras políticas e da mobilização comunitária é mandatória.
Referências
ALCÂNTARA, Alexandre de Oliveira Organizador; CAMARANO, Ana Amélia Organizadora; GIACOMIN, Karla Cristina Organizadora. Política Nacional do Idoso: velhas e novas questões. 2016.
BRASIL. Lei no 10.741, de 1o de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 3 out. 2003. Disponível em:
DEBERT, G. G.(1999) A reinvenção da velhice: socialização e processos de reprivatização do envelhecimento. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/FAPESP.
DEBERT GG. A dissolução da vida adulta e a juventude como valor. Horiz. antropol. 2010 jul/dez; 16(345): 49-70.
LINS DE BARROS MM. A velhice na pesquisa socioantropológica brasileira. In: Goldenberg M (org.). Corpo, envelhecimento e felicidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2011.p.45-64.
MINAYO, M.C.S. (2011) Envelhecimento demográfico e lugar do idoso no ciclo da vida brasileira. In: TRENCH, B.; ROSA, T.E.C. (Orgs.). Nós e o Outro: envelhecimento, reflexões, práticas e pesquisa. São Paulo: Instituto de Saúde. pag.7-15. Disponível em: .